Falta gente nessa história
Durante
anos ouvimos que a Carta de Pero Vaz de Caminha é a certidão de nascimento do
Brasil. E Pedro Alvares Cabral, nosso pai. Assim fomos educados nessas
narrativas que deram o tom da nossa história. Personagens “importantes”, datas
e seus grandes feitos. E olhando para a escrita da história valinhense encontramos
similaridade com essa “grande história nacional” aprendida.
A certidão de nascimento de Valinhos
é a Carta de Sesmaria concedida ao sesmeiro Alexandre Simões Vieira, em 1732. E
na ausência de um pai biológico e fundador da cidade, e num desses arranjos
historiográficos, o imigrante italiano Lino Busatto, ao qual se credita a
introdução do “Figo Roxo” em Valinhos, é o nosso pai do coração.
Valinhos (antigo bairro de
Campinas), segundo escreveram, teve grande impulso após ser (umbilicalmente) ligada
à Jundiaí pelos trilhos da ferrovia, por onde era transportado o café até o
Porto de Santos e de lá para o mundo. E que a pujança da produção agrícola cafeeira
somente aconteceu após o fim da escravidão e com a presença do imigrante
italiano. Sempre importante lembrar, conforme ressalta a professora Roasana
Baeninger, que “os negros em 1854 representavam 57,7% da população
campineira”.
Essa forma de historiar Valinhos
sugere que nos constituímos enquanto uma coletividade graças à labuta do homem
branco, desde que europeu e italiano. Já os trabalhadores negros surgem pontualmente
como mão de obra escrava, e depois eles somem da nossa história.
Pesquisando em jornais do século XIX
podemos encontrar várias referências a esses trabalhadores negros que viveram
nesse lugar chamado Valinhos. Homens, mulheres e crianças que também tiveram a
sua história, claro que não podemos reconstruí-las na sua totalidade, mas, a
partir de fragmentos de notícias é possível recoloca-los nos seus devidos
lugares.
Em 1872, numa fazenda próxima a
Estação Ferroviária de Valinhos, viveu um negro escravo chamado Pio. Cansado de
tantas humilhações ele fugiu e o seu proprietário publicou anúncio no jornal “Gazeta
de Campinas” descrevendo as características do escravo: mulato de cabelos
corridos e quase preto, de altura regular e cheio de corpo, nariz afilado,
tendo nas costas um sinal de queimadura (...). Sabe ler e escrever e trabalha
um pouco de alfaiate.
"Negra tatuada vendendo cajus" - Jean-Baptiste Debret, 1827 |
Importante observar que em 1872, o índice de analfabetismo no Brasil era de 82,3%. Percebemos um interessante contraste em relação ao negro Pio, que além de saber ler e escrever também desenvolvia a atividade de alfaiate. Ele fazia parte do seleto grupo de quase 18% daquela população brasileira alfabetizada.
Negros que viveram ou passaram por
Valinhos, necessariamente não eram escravos, muitos eram homens livres. Como
foi o caso do carpinteiro Claudino Gregório Fernandes e do seu sobrinho Gustavo
de Paula Vianna. Numa manhã de 1887, após embarcarem em Campinas com destino ao
trabalho que Claudino chefiava numa fazenda em Valinhos, a viagem acabou sendo
interrompida pelo chefe do destacamento militar daquela cidade, Florismundo
Colatino. Escravos eram considerados mercadorias, a polícia atuava na captura
desses bens e os devolvia aos seus proprietários, porém, o tal capitão ultrapassara
o limite das leis ao tornar todo negro objeto de suspeição. Foram intimados a saírem
do vagão, tomados como escravos fugidos. Avisados por passageiros que os dois eram
livres, o capitão deixou Claudino seguir o destino, levando Gustavo à cadeia. O
diário carioca “O Paíz” pedia providências ao presidente da província de São
Paulo contra “estes escandalosos e
inúteis vexames”. Cenas que o tempo ainda não apagou na prática cotidiana
da nossa história.
O jornal “Diário de Campinas”
noticiou em Junho de 1888, um mês após abolição oficial da escravidão, que na
fazenda de José de Godoy Lima, no bairro de Valinhos, apareceu uma jovem negra pedindo
roupas e trabalho. Dias depois sua ex-dona, a viúva de Prudente Pires Monteiro,
apareceu na fazenda exigindo o retorno da jovem negra, ou por bem ou à força. Lembrada
que a escravidão não mais existia, a jovem não poderia ser lavada à força. Então,
sua ex-dona retrucou que a negra lhe custara dinheiro. O fazendeiro ficou sem
reação quanto ao direito da jovem, segundo declarou, “não poderia se colocar contrário a essa violência, por ela vir de uma
senhora”. Nesse caso vemos que imperou o respeito à idade daquela que
desejava manter a escravidão em detrimento do direito recém-adquirido da jovem
negra. A liberdade!
E por que os negros não aparecem na
história de Valinhos? Aqueles que se interessarem pela pesquisa da história
valinhense atentem-se a recondução ao sol dessa imensa massa de trabalhadores
“esquecidos” e relegados à escuridão. Mãos a obra!
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Gérsio
Pelegatti é professor da história não aposentada
Texto digno de estar nos livros de História.
ResponderExcluirFalta muita gente. Esse texto precisava ir para os livros de história. Mas não vai porque existe uma elite que nos pediu para "esquecer o passado". Logicamente o passado que não lhe convém. A Lei 10.639/03 está aí há 14 anos e ninguém nem toca no assunto.No entanto, felizmente ainda temos quem levante a voz. Por um 2018 com mais Gérsio Pellegatti e menos outras figuras asquerosas que povoam as Redes Sociais.
ResponderExcluirÓtimo texto. Poxa que orgulho que tenho de poder apreciar tudo isso!
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