Incondicional

Nossos olhares se cruzaram pela primeira vez numa noite do feriado de 1o. Maio de 1992, após uma agenda como candidato a vereador. Comigo estava o nosso candidato a prefeito, juntos, erámos guiados pelas estrelas. As noites sempre foram as nossas anfitriãs para longas conversas acerca da poética que a cidade valinhense ainda dispunha. Os nossos sonhos eram retirados da poesia cotidiana, matéria-prima fundamental na composição do nosso extenso e ainda inacabado plano de governo. 

Aquela noite fria distanciava um considerável número de clientes daquela pizzaria que um dia existiu ali próxima ao Alves Aranha. O aroma das massas e seus recheios misturavam-se ao odor dos sabonetes exalados por uma ou outra chaminé da Gessy. Daquela mesa que estávamos ouvíamos um ruído contínuo vindo da Rigesa e conseguíamos avistar as longínquas e poucas luzes noturnas que circundavam a cidade. Nelas residia um dos nossos desconfortos ao nos depararmos com uma proposta vinda de outro candidato a prefeito que defendia a ocupação de todos os espaços da cidade. 

Entre alguns goles de cerveja acompanhada por generosa dose de stanheguer uma amiga entrou na pizzaria trazendo duas outras amigas dela. Adicionamos novas cadeiras junto a nossa mesa e estranha doçura invadiu os meus sonhos. Fiquei ali, debruçado sobre aquele olhar encantador, ouvindo ideias daquela estranha ao lugar e portadora de outro olhar sobre a existência. Mulher de cabelos levemente encaracolados, olhar firme, gestos delicados e palavras especialmente escolhidas para qualquer ocasião. Trajava uma roupa apropriada àquela noite de outono e seus ombros estavam envolvidos por um lenço-echarpe em tons de azul. Sua figura me trazia lembranças da personagem Carmen, filme de Carlos Saura. De-harpávamos enquanto a noite avançava pela madrugada. Nos despedimos, mesmo desejando que aquele instante pudesse ser imobilizado no tempo, e entre os beijos de um até breve, guardanapos foram trocados com telefones e endereços. 

A semana que se inaugurava não conseguiu ser remada naquele costumeiro compasso de uma vida besta e interiorana. Meu barco a deriva recebe um mensageiro portando missiva embalada por papel com bordas verde e amarela exalando aroma de delicada fragrância. Minhas mãos tensas e umedecidas abriram aquele envelope com merecida delicadeza. Leio atentamente cada palavra e busco uma nova composição que as nossas vidas desejavam. A nau toma nova direção, agora cadenciada por um tambor batendo acelerado dentro do meu peito e juntos, eu e ela, aportamos no porto inseguro das paixões.
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Gérsio Pelegatti é professor da História não aposentada

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