Que fim levaram todas as flores?

Durante anos dona Leocádia fez quase tudo sempre igual. Saia da cozinha segurando um canecão com água fervida despejando-o numa bacia de ágata, acomodada sobre um tapete de juta no chão do quarto de banho. Num dos cantos do cômodo uma cadeira antiga aguardava aquele corpo exausto. Misturava na água sabão de cheiro, alecrim, arruda e massageava seus pés depois de um longo dia indo e vindo dos afazeres da casa. Feito seu ritual noturno, os enxugava com toalha de algodão branco com fios trançados na franja. Vestia sua roupa de dormir e acomodava seus pés num macio chinelo forrado com lã Merino, presente do seu primogênito, e seguia em direção ao quarto de dormir.

Sentava-se na beira da cama, pertinho da janela e abria o seu livro sagrado. Elevava seus pensamentos ao altíssimo e com a voz baixinha rezava pelos seus entes queridos. Fazia oração especial para o seu filho e ficava ali entre tantas lembranças, em transe. Fechava o livro, beijava-o, acomodando-o sobre a cama. Com o terço entre os dedos pedia proteção para a família, aos vizinhos, a todos aqueles que padeciam nos leitos dos hospitais, nas penitenciárias, aos que dormiam abrigados debaixo das marquises... Com a memória lenta, dona Leocádia esforçava-se para não deixar ninguém fora da sua súplica. 

O seu rogatório final reservava para todos os governantes do Brasil. Com muita fé pedia para o salvador colocar suas mãos de luz e saber sobre aqueles cidadãos, conduzindo a nação pelo caminho do bem, evitando que Satanás se aproximasse. E dormia em paz. 

Despertava e logo depois do seu café matinal ligava o rádio, fiel companheiro e portador das novidades do país e do mundo. Pelas ondas viajava nos seus afazeres diários com seus ouvidos antenados. O locutor, portador das novidades vindas de Brasília, trazia revelações que dia após dia foi deixando dona Leocádia desconfiada da sua fé. Não se conformava que depois de tanto pedir pelo passo certo dos governantes, Satanás rompeu o cerco que ela vinha construindo durante anos. E apesar da sua dúvida ela não esmorecia, mesmo com as péssimas notícias diárias. E o diabo prevalecia. 

O sol sumia no horizonte e dona Leocádia iniciava o seu ritual. Depois do banho de cheiro nos pés e suavidade, rezava pelos que partiram e pelos seus irmãos que padeciam no país. Cansada da constante presença do tinhoso nos palácios, eliminou o seu rogatório final e passou a cantar velhas canções para embalar suas noites de outros sonhos: “Que fim levaram todas as flores? Que qualquer coisa não estragava/Em qualquer dia que podia/Com grande amor e alegria/Que fim levaram todas as flores?/Que a criança às vezes me pedia.” *

(*Que Fim Levaram Todas As Flores? - Secos & Molhados)
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Gérsio Pelegatti é professor da história não aposentada









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