Além do figo roxo

Acordei numa manhã de chuva fina, tragado por uma obra do artista Marcos Guimarães, que emoldura a Câmara Municipal valinhense. Descobri que o Olimpo é mais perto do que sempre imaginei. Assistia a uma partida de xadrez de lances estranhos, sem muito estudo, desse ou daquele outro deus. A partida entediava e do Olimpo descobri a polis lá embaixo, habitada por alguns semideuses e milhares de mortais. Passo a investigá-la.
Painel Comemorativo alusivo ao centenário de Valinhos
 como Distrito de Paz, 1996 - Marcos Guimarães
No horizonte avistei enormes plantações de cana de açúcar e muitos negros trabalhando sob um sol escaldante e chibatadas que por vezes feriam um ou outro. Vejo o feitor, homem embrutecido que avança sobre uma criança, seu pai abandona o árduo trabalho e trava luta com o feitor, senhor dos castigos e malvadezas. Defendendo sua filha, o negro da uma “piuvada” com a enxada na cabeça do agressor, que tomba inerte. O escravo foge e pega caminho em direção da cidade de São Paulo e ali se entrega ao delegado e após processo é absolvido.  Esse caso ficou conhecido, por volta da metade do século XIX, como o “Crime da Capuava”.

Aos poucos as plantações de cana de açúcar vão se retirando da paisagem e outra vai sendo materializada, o café. Pipocam brotoejas vermelhas e no meio daquele mar lá estão eles, os negros e os brancos europeus. Dessas terras exigiram até a última gota dos seus nutrientes. Cansadas elas foram fracionadas em pequenos pedaços de terras, compradas e pagas com um pecúlio acumulado dos salários rurais, por alguns homens brancos europeus.
"Colheita de Uva III", 2009 - Jerci Maccari 
Antigos cafezais vão dando lugar a uma nova territorialidade. Laranjeiras, videiras, figueiras, macieiras, pessegueiros, goiabeiras... A nossa pequenina polis começa a abastecer as necessidades de sobrevivência daqueles que viviam nas maiores. O ano de 1905 passa pela minha frente e nele encontro um relatório da “Repartição de Estatística e Archivo do Estado de São Paulo”.  Folheando me deparo com a discriminação de vários gêneros alimentícios produzidos na polis campineira; Valinhos, que na época era um distrito dessa cidade, já contribuía com uma modesta, porém notável, produção de vinho se comparada com toda a produção existente no estado de São Paulo.

Cansado, busco conforto num dos bancos do Coreto no Largo da Matriz. Peço licença pra um cidadão que ali se refresca a sombra, gentilmente ele faz menção pra que eu descanse ao seu lado. Simpático ele se apresenta como Batista Bigneti, primeiro agricultor da polis valinhense a produzir maçãs comercialmente, em 1926.  Nos despedimos e sobre o banco ele deixa um exemplar do jornal Correio Paulistano. Vejo as últimas notícias: enchente do Ribeirão Pinheiros que deixou moradores da Rua 12 de Outubro e das casas dos empregados da ferrovia desabrigados; tiros desferidos contra um simpatizante do PRP por outro do PConstitucionalista num comício ao lado da Matriz de São Sebastião; excursões de bancários, escoteiros, do time do Corinthians para a afamada Fonte Sônia; projeto de lei que determinava o calçamento da Rua Campos Sales antes mesmo do saneamento...  Olha que notícia interessante, a pequena Valinhos figurando com uma significativa produção de laranjas exportadas para a Inglaterra.
"Bananeiras", 2011 - Eliete Tordin 
Saio do Olimpo e me deito pra mais uma noite. Quem sabe se amanhã não acordo tragado por mais uma dessas bonitezas pintadas pela Eliete Tordin ou Jerci Maccari!

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Gérsio Pelegatti é professor da História não aposentada

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