Os invisíveis

A rua sempre foi pública. Talvez, no passado, ela tenha sido até mais pública que nos dias de hoje. E por aquelas vias circularam dezenas de diferentes sujeitos. Pedintes, vendedores ambulantes, artistas de circo anunciando estreia, homens vendendo a salvação. 

Um desses “comerciantes da salvação” era de um grupo de moços, vestidos com seus terninhos, todos com o cabelo raspado e pedia para entrar nas nossas casas, benzendo-as com a imagem de uma das Nossas Senhoras. Além da imagem que carregavam, os acompanhavam umas bandeirolas vermelhas bordadas com a figura de um leão. E bem ao gosto medieval. Garantia-se assim, que a pátria brasileira não seria importunada pelo comunismo.

Outros tipos perambulavam e batiam palmas de casa em casa, anunciando suas presenças. Um deles eram mulheres com crianças no colo, apresentando-se maltrapilhas, quase todas com uma ferida exposta numa das suas pernas e esmolando uma “ajudinha pelo amor de Deus”. 

De todos que circularam por aquela pública cidade, a figura daqueles sujeitos que surgiam das sombras, eram as que mais amedrontavam os nossos sonhos de infância. Seres cobertos por pedaços de cobertores arrastavam-se pelas ruas e suplicavam ajuda. Quando ficávamos sabendo das suas presenças, um misto de curiosidade e medo tomava conta da gente. Na nossa fantasia pedaços depreendia-se de seus corpos. Homens e mulheres desfigurados, e corríamos em fuga não sabendo para onde. 

Pelo menos duas vezes ao ano ouvia meus pais dizerem que um determinado vizinho estava recolhendo mantimentos, produtos de higiene e roupas. Depois da coleta feita, um grupo de moradores do bairro entregaria para os habitantes daquela cidade, distante, onde viviam os portadores das chagas de Lázaro. E a fantasia voltava tomar conta daquela criança. Afinal, onde ficava essa cidade? As respostas sempre eram as mesmas, confundindo o raciocínio lógico, que por ventura, eu pudesse ter.

Mas a fantasia imperava quando teimava pensar sobre aquela cidade escondida. Na minha imaginação ela era parecida com outra qualquer, feita de casas, bares, cinemas, escolas, fábricas, hospitais. Ocupados por homens, mulheres, crianças que portavam uma mesma condição. Todos dessa cidade eram sujeitos sem identidade e como tais, não lhes era permitido saírem do local. Mas alguns escapavam dessa terrível imposição. 

Uma cidade de sombras humanas que perambulavam cobertos por trapos escondendo suas chagas. Mas eu não sabia que apesar das suas dores, todos ali eram iguais. E essa era a grande diferença!
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Gérsio Pelegatti é professor da História não aposentada


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