A falta


Acordou um pouco mais tarde naquele domingo. Tomou um café despreocupado e fez demorada leitura do jornal estendido sobre a mesa. Por vezes passeava o olhar sobre as palavras sem dar muita importância para uma ou outra notícia. Noutras vezes levantava os olhos parando a leitura e mirando o vazio da paisagem vista da janela, refletindo novos significados para requentadas notícias. Saboreava aquela manhã de um domingo de agosto preguiçosamente, encontrando instante de felicidade enquanto rodopiava a colher na xícara adoçando seu último cafezinho.

Seu corpo ia sendo refeito aos poucos, banho, barba, desodorante, perfume. Vestiu a bonita roupa domingueira e tomou rumo, chegando pontualmente para o almoço de “Dia dos Pais”, num restaurante as margens ao rio Atibaia. Aguardado por alguns amigos, acomodaram-se confortavelmente numa saborosa mesa na varanda com vista para o rio que lhe inspirou saudade das pescarias, passeios de canoa e do avô.  

O garçom trouxe o cardápio. Escolheram os aperitivos, o couvert, as entradas, ficando o prato principal na espera. Resolveu esquecer o cotidiano comprimido e saboreou uma dose de caipirinha. E foram tecendo e costurando fragmentos de ideias, formando uma enorme colcha sobre o cosmos.

Entre uma garfada e outra observou uma criança numa mesa oposta a sua esboçando descontentamento, enquanto adultos postados ao lado dela se empanturravam. Fechou o seu olhar nas bocas daqueles seres grandes que mastigavam apressadamente bolinhos, pastéis e pães com creme de berinjela. Mãos abandonavam talheres sobre os pratos, taças portadoras de doce líquido eram ingeridas, amalgamando uma nova liga de sabores e odores nos confins daquelas goelas. E a criança permanecia ali, viajante de um barco à deriva nas águas do rio Atibaia, nessa dificultosa travessia de uma margem a outra. Só, e à margem.

Nesse instante de solidão o miúdo encontra uma colher dando sopa. Num piscar de olhos uma nova amizade surge entre os dois. Juntos, a criança e sua nova parceira de aventuras são levadas a um infinito mundo de descobertas. Segurando a colher ela olha para o convexo e vê a representação da realidade. Virando para o côncavo descobre um mundo de pernas para o ar. Maravilhada por essa descoberta, ela ri e esboça uma careta para si, nesse instante, uma visão invertida da realidade desse outro eu que habita esse outro lugar distante desses pais que se fartam na falta.

Naquela mesa estão faltando eles e a saudade deles....
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Gérsio Pelegatti é professor da história não aposentada.


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