Cacos de memória

A minha infância foi uma longa caminhada. Na década de 60, um grupo de crianças saídas do bairro Serrote percorriam a empoeirada Av. 11 de Agosto, sob a vigilância da nossa vizinha, Deolinda Somera. Amigos arrojados equilibravam-se nos canos da adutora, enquanto outros, atravessavam o riacho da Av. dos Esportes pisando sobre as pedras. Mais um trecho pelo brejo e escalávamos uma trilha desenhada no íngreme barranco e chegávamos à escola do pré-primário, que existia na Rua Itália.  Andando fomos às praças, cinemas, circos, casa dos amigos e parentes.
Encanamento da Adutora de Rocinha,
passando pela Av. 11 de Agosto, Valinhos/SP
Acervo Haroldo Pazinatto

Os ônibus começaram a circular no final da década de 70, quando se iniciou o processo de expansão das franjas urbanas do município com novos loteamentos, confinando a classe trabalhadora valinhense longe dos seus locais de produção.
            
Para longas distâncias tínhamos os trens, que nas ensolaradas manhãs de sábado, nos levava ao famoso Bar do Pinguim, em Ribeirão Preto. À noitinha, desembarcávamos na estação ferroviária de Valinhos, felizes pelo encontro com o deus da cevada, Sabazius.  

Os ônibus fretados ajudaram a tornar alguns finais de semana mais prazerosos.  Pelo menos uma vez por ano, no verão, Praia Grande era o destino. As 4h da matina do domingo deixávamos a Matriz de São Sebastião para trás em busca do sol, e quem sabe, uma paixão. A viagem era uma festa compartilhada de frangos assados, farofas, tubaínas e batidas alcoólicas. No final da tarde besuntávamos nossos corpos com Hipoglós e retornávamos mais felizes e ardentes, para outra semana de produção.  
            
Reconheço que não gostava dos passeios religiosos, Aparecida do Norte e Tambaú: ajoelhar, se benzer, rezar, venerar o tempo todo. Sem contar que por umas semanas não podíamos “bestemiar, tirar umas madonas”, pois lá vinha nossa mãe dizer que estávamos em pecado. O velho jogo do sentimento de culpa, o atraso da nossa civilização.
            
Para cada estação do ano, as excursões nos levavam a diferentes destinos. Outono e inverno, Campos do Jordão, na primavera, Ibitinga ou Poços de Caldas. Eu gostava das idas até Pedreira. Adorava. Era pertinho e voltava logo, dando tempo de ir ao Cinema do Bepe e depois fazer ponto na pastelaria do Tan, ou então ir paquerar as meninas na Praça Washington Luís. Minha mãe gostava mais ainda de Pedreira. Canecas, pratos, vasos, santos, xícaras, pires, cinzeiros, manteigueiras e mais um monte de “verrunca” para enfeitar a nossa casa. As paredes da sala ficavam lindas com aquele voo sequencial das três andorinhas azul marinho pendurada na parede.
            
Com o tempo as louças foram se desfazendo, se quebrando assim como aqueles nossos dias. Às vezes me pego juntando esses cacos de memória, desejando uni-los com uma cola ou um sentimento qualquer.

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Gérsio Pelegatti é professor da história não aposentada.

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