Daquilo que fomos feitos

Ulisses foi uma dessas crianças de infância saborosa. A rua da sua casa foi o lugar (in) comum das coisas e dividia-se entre brincadeiras das meninas, dos meninos ou coletivas. Os dias tinham dois instantes especiais: manhãs sonolentas os compromissavam com a escola, e as tardes de largo sorriso lhes ofereciam o tempo da liberdade, espaço da diversão e das descobertas. Teve um tempo que a rua fora pública e todos sabiam disso. 

Quando completou 13 anos, perdeu o pai, Telêmaco, homem de coração generoso e consciente do mundo que vivia. Foi operário durante anos na Fábrica de Chapéus Orion e também um atuante sindicalista. Morreu dias depois do último dia do mês de Março do ano de 1964. Informações desconexas apontavam para uma tocaia, armada por alguns sujeitos estranhos ao sindicato. A morte daquele homem benevolente virou insignificante notinha de rodapé no jornal da cidade. Porém, sua prática e queda tornaram-se ingredientes desse enorme coletivo de memórias individuais, amalgamadas no futuro da nação e vividas nesse momento presente da nossa história. 

Ausentou-se o sustento afetuoso da alma, como também o alimento físico. Aos poucos as dificuldades financeiras foram se aproximando de Ulisses e da sua mãe, dona Penélope. Com o passar das estações, a viúva foi dando maior ritmo a cadencia dos seus pés no contínuo ato de pedalar a sua velha Singer. Alinhavava e cosia calças, camisas, vestidos, blusas e principalmente a esperança no futuro.

As dificuldades impostas fez com que o garoto abandonasse a liberdade da rua e foi trabalhar. Tornou-se mão de obra barata aqui e acolá, lhe possibilitando alguns poucos tostões que ajudavam na rotina da casa. Aos 15 anos tornou-se aprendiz numa fábrica que usinava peças para máquinas industriais, a Oficina Central. O espaço da produção era um centenário galpão com pouca claridade e dali era possível observar partículas de ferro fundido e poeira nos fachos de luz que entravam por um ou outro buraco existente no telhado daquele lugar. A isso se somava o forte odor de graxa que se espalhava pelo local. Aquela fábrica era a mais perfeita tradução do ambiente sombrio ao qual o nosso país estava imerso. 
Operários, 1933 - Tarsila do Amaral
O garoto tinha um chefe que mais se assemelhava a um capataz, daqueles que conhecera nos livros de História. Como aprendiz, naqueles idos dos anos de chumbo no Brasil, ele sofreu várias humilhações impostas pelos “colegas”, homens mais velhos vestidos com suas cascas. Um deles foi Juvêncio Bezerra, que colocava o seu grande e pesado traseiro numa cadeira junto a uma mesa imensa e vazia de consciência e de lá, o bode velho berrava dando suas ordens, não sem antes adjetivar negativamente todos aqueles meninos aprendizes. Aquelas crianças se encolhiam e acreditavam que o Brasil que os aguardava no futuro era aquele modelo. Afinal, como o bode velho costumava exclamar ao observar um olhar discordante: "o seu direito termina onde começa o meu". Internamente Ulisses tremia, mas não concordava. Num tarde de enorme saudade, Ulisses consubstanciou-se das lições dadas pelo seu pai, estufou o peito e lá do fundo da oficina gritou para o bode velho: “o meu direito caminha paralelo ao seu...”. 

Nesse dia de cidadania ele reencontrou-se com a liberdade da democracia, permitindo inclusive hoje, que alguns sujeitos queiram o retorno daqueles dias da mais completa submissão.

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Gersio Pelegatti é professor da história não aposentada

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