Oxalá

Durante anos fui vigiado e vigiei Santa Luzia e Santa Rita, fixadas no alto das paredes da casa da minha avó Ermelinda. Troquei olhares com muitas outras imagens nas igrejas e capelinhas, como uma que existiu no Sítio São Francisco, do tio Nico Juliatto. Aos poucos passei a gostar dos santos, do seu colorido, da composição dos gestos e do olhar.
Santa Luzia
A Santa Casa era longe e o Posto de Saúde no centro de Valinhos me deixou a dolorida lembrança de uma unha sendo extraída do dedão do pé. Ambiente de paredes brancas e numa delas um retrato de uma enfermeira com o dedo indicador direito ereto e encostado na boca indicando silêncio. Obediente, contive o choro, mas os meus olhos aflitos buscavam pelos santos do olhar caridoso e protetor. Perdi a unha e também o meu primeiro par de sapatos, presente do meu tio Roberto, que seria estreado na crisma e adiada para anos mais tarde.
Santa Rita
Quando o corpo amanhecia indisposto a cura vinha com os chás de ervas do quintal. Para outras manhãs mais sérias meus pais me levavam a benzedores do bairro Serrote ou próximo a ele. Reencontro na memória os irmãos Lulu e Eugênio Vieira, esse último curou muitos craques de futebol do Palestrinha, que padeciam fisicamente. Além da dona Rosa, do Antônio Curador, da dona Franquita, do Zanuchi, da dona Isolina, Antônio Juliatto e a dona Sebastiana. Filas se formavam e todos eram atendidos, independente da classe social, não havia omissão. Para Nossa Senhora Aparecida, velas acesas e a confiança da sua proteção. Ouviam as nossas dores e com a voz baixinha nos benziam com suas rezas, com suas mãos, seus óleos, suas velas, rolhas, barbantes, galhinhos de arruda e alecrim. Diziam ter recebido dos antigos essa sabedoria com a missão de fazer o bem sem olhar a quem. A cura vinha da nossa fé. 
A cura vinha da nossa fé
Nossos protetores digladiavam pelo menos com dois outros perigos daquela época. Ao longo da Avenida Paulista e do lado de lá do ribeirão Pinheiros, existiam várias lagoas que sugaram alguns amigos. E do lado de cá desse mesmo ribeirão, a linha férrea, passarela diária de dezenas de litorinas que ceifaram a vida de alguns outros. 

Na menoridade de Valinhos, nossos pais oriundos do mundo rural, traziam em suas bagagens uma vivência onde o Estado ausentava-se e a sobrevivência exigiu a construção de uma sabedoria popular. Um delicioso sincretismo, resultado da mistura entre as culturas indígena, negra e caipira. Com a urbanização adolescente valinhense, nossa saúde e crenças se tornaram operárias, fazem o bem, mas também olha a quem. E inconscientemente esse saber popular vai escapando de nossas mãos. Valei-me Nossa Senhora!

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Gérsio Pelegatti é professor da história não aposentada

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