“Pirãozinho & Mocotó”

 O homem ziguezagueava pelas ruas do bairro. Estufava o peito e com sua voz rouca e inconfundível soltava a todos os pulmões seu cântico de anunciação: “é a cortina, cortina, cortineiro... é a cortina, cortina, cortineiro...”. No seu ombro direito um feixe de cortinas, varões de madeira com dezenas de longos fios de plástico coloridos amarrados numa trama que dava gosto de ver. Equilibrava a sua carga diária com o auxílio da sua mão direita. Dizia que suas cortinas “eram excelentes na porta da cozinha”, evitando que as moscas mais insistentes pudessem entrar naqueles ambientes assépticos do preparo e da comilança. 

E lá vinha o sorveteiro com sua caixa de isopor presa por uma fita pendurada no seu ombro transpassando pelo peito, a sonora emitida com sua gaita era a senha para pegarmos dois ou três tostões e comprarmos pequenas barras de gelo com sabor. Nossos olhos brilhavam na eminência de nos refrescar a sombra de uma mangueira naquelas tardes empoeiradas de verão. 

Dos bairros operários que circundavam a cidade, partiam os pipoqueiros empurrando seus pesados carrinhos em direção à região central, neles, transportavam gostosuras: pipoca, amendoim torrado, doces, geleias coloridas, paçoquinhas, raspadinhas. Esses ambulantes nos encantavam com o colorido e os diferentes cheiros que os nossos olhos e narizes escutavam. Fui vizinho do “seu” Santo Pipoqueiro, casado com a dona Maria, que fazia o melhor doce Quebra-Queixo, vendido na cidade e na Praça Washington Luís, nos finais de semana. Com carinho guardo esse casal no meu coração, onde moram tantas gostosas lembranças. Depois de preparar os doces, cuidar da casa e dos filhos, dona Maria também gostava de cuidar do seu jardim que enfeitava a frente da sua casa. Naquele trabalho ela ia misturando novos sabores aos seus sentimentos e solidificando suas relações de afeto e sociabilidade. Certa manhã eu a encontrei no seu jardim parecendo menina que ganhara boneca nova, falou-me de uma muda que há muito fazia gosto, Príncipe Negro, roseira de flor vermelha muito intensa. Cavando terra macia dava para o seu Príncipe lugar especial entre outras cores e sabores do seu jardim. 
"Seu" Santo Pipoqueiro e Dona Maria
Nas palmas, na matraca, na corneta, no alto-falante, na gaita, na voz. Cada um tinha um som próprio pra ser identificado. Na periferia da nossa cidade os ambulantes se diversificavam: o vendedor de pamonha, de biju, de algodão doce, de linguiça, de queijo, de mandioca, de ovos, de sardinhas, de óleo, de verduras, de frutas, roupas de cama, mesa e banho, de tapetes e passadeiras. Só não emitia uma sonora de identificação, o fiscal. Chegava de mansinho, como um gato e de vez em quando lavrava uma multa. Certa vez, bem em frente da minha casa tinha um sujeito muito conhecido na cidade, vendendo uvas. Chega o fiscal pedindo o Alvará de Autorização Municipal, e como não dispunha desse documento oficial, o agente público disse que a carga estava confiscada e levaria até a prefeitura. Foi nesse momento que o vendedor começou a despejar as uvas das caixas sobre o assoalho do seu caminhão e as pisoteou. Depois de bem socar com os pés e satisfeito, disse ao fiscal que ele poderia levar as uvas. 

Ainda estávamos resvalando um dos nossos pés no século 21, quando fomos surpreendidos por caixas de som enfeitando os postes de energia elétrica do centro da cidade. Esse serviço de alto-falante expele musiquinhas, o nosso imposto som ambiente de cada dia. Tenho um amigo que foi morador dessa região, mas acabou mudando-se pra Campinas, por tanto aborrecimento que essa sonoridade lhe causou, apelidando de “Pirãozinho & Mocotó” o gênero das músicas que saem dessas caixas moedoras da paciência: a representação da invasão do espaço público pelos interesses privados. 

Os bairros estão protegidos dessas caixas, mas expostos a festeiros trombeteando e corneteiros gritando desesperadamente pra comprarmos guarda-roupas, fogões, geladeiras, fraldas, xampus, extrato de tomate, durante os nossos preciosos dias de contemplação do mundo. Como diz o poeta Mario Quintana, “Minha rua está cheia de pregões. Parece que estou vendo com os ouvidos: Couves! Abacaxis! Caquis! Melões”. 

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Gérsio Pelegatti é professor da história não aposentada

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