E la nave va

Naquela tarde, depois de mais uma manhã cotidiana de labuta ele voltou para o número 1789, casa moradora na Travessa dos Jacobinos, decidido a mudar o seu rotineiro dia após dia. O velho professor de humanidades, cansado do tempo e da cátedra, mentalmente fez concessão a um dos tantos desejos arquivados. Aliviou o corpo e desatando nós da psique foi caminhando pari passu pelos estreitos labirintos do prazer.  Não deu importância para aqueles calhamaços de avaliações, pesquisas e intermináveis questionários produzidos pelos burocratas construtores das políticas educacionais. Também não leu algumas páginas de uma das obras de Hobsbawm ou Michael Foucault, seus diletos da sua extensa biblioteca. Dirigiu-se até uma sala contígua a de estar e ali pinçou da prateleira, com o auxílio do indicador da mão esquerda, um dos seus Long Players. Retirou o vinil da embalagem e deu um leve sopro de vida na poeira do tempo impregnada nos delicados sulcos, desejando reviver a alegria ali contida de outros instantes.  Levantou a tampa revestida de corino da sua velha Sonata, alterando a alavanca das rotações, colocou aquela delícia cheia de bossa para rodar. Rodopiou abraçado em si mesmo por todos os cantos daquela sala. Ouviu a tarde e adentrou a noite, embalado por doses de delicada sonoridade e Cherry Brandy.
          Amanhece, não mais um dia, mas outro dia oferecendo-lhe uma ressaca de prazer.  Libertando-se da culpa que o aprisionava, caminha decidido em direção à rodoviária da cidade desejando outro rumo. Com o seu olhar percorre os guichês que oferecem as mais variadas mudanças. Aguarda o horário do seu destino acomodado numa das cadeiras de plástico engorduradas do lugar. Seus olhos atentos percorrem aquele espaço, investigando os diferentes sujeitos que por ali se arrastam em busca de uma nau dos loucos e partir.  Com pequeno atraso de 15 minutos a sua nave estaciona na plataforma 07 e o homem das humanidades embarcou. Acomodou-se numa poltrona reclinável e lá foi o nosso homem, bêbado por tanta humanidade encontrar-se com a princesinha do mar...
         
Dia de luz, festa do sol. Acomoda o corpo ainda rígido numa gostosa espreguiçadeira, estica as pernas sentindo cada um dos seus músculos e pisa com suavidade sobre cristais cintilantes que acariciam seus pés e a brisa invade sua alma, agora leve. Olha a imensidão do azul profundo até o mais longe horizonte que suas rejuvenescidas vistas alcançam, fecha os olhos e fotografa aquele instante mágico, único.
          Leve, a gostosa lembrança para ser revisitada quando o tédio contido naquelas intermináveis e chatas reuniões reaparecerem na vida daquele velho professor de humanidades, cansado do tempo comum, dos pequenos poderes e das teorias e políticas pedagógicas vazias que olham para tudo, exceto para o essencial. 
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Gérsio Pelagatti é professor da história não aposentada

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