Tardes peripatéticas*

Depois de um ano e meio aposentado fui mexer nas lembranças guardadas nesses tantos anos como proletário da educação. Abri o armário ao lado de uma estante de livros num quarto da minha casa, que na saudosa ausência de um dos meus filhos foi transformando num escritório. Na parte mais alta do armário guardo uma caixa, depositária de pequenos mimos recebidos de tantos alunos que, em dias de admirável liberdade, escreveram, desenharam e rabiscaram coisas que me enfeitiçaram. Tal qual aquelas caixas que nossos pais ou avós guardam em seus guarda-roupas contendo fotografias de família, santinhos de sétimo dia, recortes de jornais, trouxinhas com cabelinhos recolhidos no primeiro corte, que aos domingos, após o almoço em família, buscam e abrem sobre a mesa. Para cada lembrança que vai sendo revelada dessas caixas mágicas, uma história.


Da minha caixa saíram vários papeizinhos, mas teve um que saltou dobradinho e aos poucos foi revelando o seu conteúdo. Nele estava desenhada uma flor de hibisco contornado com lápis de cor rosa e assinado pela Larissa. Voltei mentalmente para uma longínqua tarde de verão numa sala de aula quente com um ventilador barulhento girando e partículas de pó de giz vagando pelo ambiente. Na lousa uma afirmação: “Todos os homens atenienses, livres e maiores de 18 anos”, os sujeitos que participavam da democracia em Atenas. Na negação da frase a parte mais saborosa da aula, falar sobre os excluídos daquela democracia e estabelecer relações com a atualidade. 

Larissa soltou a voz cheia de cólera ao perceber que as mulheres atenienses não participavam da democracia. Cantei Mulheres de Atenas, do Chico Buarque, mostrando que naquela sociedade a mulher era educada para servir o mundo doméstico e que dispunha de um espaço exclusivo na casa, o gineceu. Convidei os alunos para um passeio pelo jardim da escola. Descemos a escada, passamos pelo sorriso duro da direção, abrimos o portão e ganhamos a liberdade do conhecimento. Ali, num elegante pé de hibisco descobrimos o órgão reprodutor feminino das flores, o gineceu. Caminhando por aquele jardim fomos coletando curiosidades que aos poucos iam sendo decifradas com o auxílio de alguns livros didáticos. 

Na tarde seguinte fui advertido verbalmente pela coordenação pedagógica daquela escola pelo fato de ter alçado voo pelo jardim. Expliquei didaticamente o significado daquela aula sob o olhar de reprovação daquela senhora. Saí da sala da coordenadora realizado e com a convicção de que para muitos adultos é mais fácil exercitar a liberdade e a democracia apenas no papel. 

*Peripatético deriva do grego "perípatos", um pátio onde se pode passear; que se ensina passeando
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Gérsio Pelegatti é professor da história não aposentada 







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